terça-feira, 15 de novembro de 2011

Olhos da Noite:Uma caneta, dez meses e 214 mortes

Bruno Lupion, do estadão.com.br
Hoje completo dez meses de repórter da madrugada em São Paulo, cobrindo acidentes e crimes, e preparei um balanço das mortes violentas que passaram pela minha caneta no período – infelizmente, elas ocorrem aos montes neste canto do globo. Foram no total 214, média de 5,35 por semana, pouco mais de uma por dia trabalhado.
Além dessas, muitas outras ocorreram e não estão nos meus registros. Ou porque foram apuradas por outros jornalistas da redação, ou porque nem chegaram ao nosso conhecimento.
Mesmo assim, 214 já é muita gente – quase o total de homicídios em um ano inteiro na Austrália. Organizei abaixo alguns dados para entender melhor as mortes com as quais convivi nesse período.
Local
Na cidade de São Paulo, foram 116 mortes. O Centro registrou o menor número – apenas três – seguido pela Zona Oeste, com oito.
Em outro patamar ficaram, praticamente empatadas, as Zonas Sul, Leste e Norte: 39 mortes na Sul, 35 na Norte e 31 na Leste.
Também cobri 56 mortes em 16 cidades da Região Metropolitana, 36 no Interior e seis em outros Estados.
Causa
Em primeiro lugar aparece o homicídio, com 78 mortes, mediante uso de armas e técnicas variadas (que detalho no próximo item). Uma observação: quatro dessas mortes foram homicídios seguidos de suicídios – em todos, o homem matou a mulher e depois tirou a própria vida.
Na segunda posição estão os acidentes de trânsito, com 49 mortos. O pior deles, que custa a desaparecer da minha memória, ocorreu em Americana, onde um ônibus municipal foi atingido em cheio por um trem de carga. Na hora, morreram nove pessoas.
Depois vêm as chacinas – quando três ou mais pessoas são mortas de uma só vez. Vinte e seis pessoas perderam a vida nessas circunstâncias, em seis chacinas diferentes.
Em quarto lugar estão os “autos de resistência”, jargão que significa a morte de pessoas em supostos confrontos com policiais: foram 20 mortes. Logo abaixo, os latrocínios (roubo seguido de morte), com 16 vítimas.
Registrei também a morte de dez pessoas soterradas, todas em janeiro de 2011. E seis suicídios, que raramente são noticiados pela imprensa – há uma percepção de que divulgar suicídios estimula as pessoas propensas a se matarem a fazer isso.
Por fim, quatro pessoas morreram afogadas, duas em incêndios, uma por tiro acidental, uma por overdose e uma por choque elétrico.
Arma ou método*
A arma de fogo é, de longe, o meio mais utilizado para matar alguém. Em dez meses, cobri 117 mortes nessas circunstâncias, por armas de diversos calibres. O revólver calibre 38 é o mais popular, mas há também muitas pistolas .380, .45 e revólveres calibre 22. Aprendi que este último, apesar do baixo calibre, é muito perigoso – uma vez dentro do corpo, o pequeno projétil se desloca conforme o movimento da vítima e vai ampliando os danos.
Em segundo lugar estão as mortes por faca: 14. Na sua maioria, histórias de violência contra a mulher no ambiente doméstico. Por fim, cinco pessoas morreram espancadas e duas foram estranguladas. Uma foi asfixiada e outra, envenenada.
*Excluídas as mortes por trânsito, incêndio, overdose, choque elétrico, afogamento, suicídio e soterramento
Policiais mortos
Nesse período, registrei a morte de oito policiais militares. O caso típico é o do PM à paisana, de folga ou fazendo ‘bico’, que sofre uma tentativa de assalto. Por instinto, ele saca a arma, mas acaba morto pelo criminoso.
Também cobri a morte de quatro policiais civis e um guarda civil de Taboão da Serra.
No Brasil, a taxa de homicídio ficou praticamente inalterada entre 1997 e 2007, segundo o estudoMapa da Violência, do pesquisador Julio Jacobo Waiselfisz. O índice em 1997, de 25,4 mortes para cada 100 mil habitantes, oscilou para 25,2 em 2007.
No Estado de São Paulo, houve queda de 70% na taxa de homicídios em período semelhante, de 1999 a 2009. A taxa caiu de 35,27 mortes para cada 100 mil habitantes em 1999 para 10,95 em 2009. No primeiro trimestre de 2010, porém, houve um refluxo – o índice cresceu 7% em relação ao mesmo período de 2009, segundo a Secretaria de Segurança Pública.
Também no Estado, no ano de 2007 os acidentes de trânsito superaram os homicídios como causa de morte não natural, segundo a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade).
Para comparar as taxas de homicídio ao redor do mundo, veja esta tabela interativa do jornal inglêsThe Guardian.
E o repórter, como fica?
Em dez meses de madrugada, rodei cerca de 14.500 km, em 18 cidades diferentes, para buscar as histórias que seriam publicadas no começo da manhã pelo estadão.com.br.
Na maioria dessas mortes violentas, fui ao local do fato e entrevistei familiares, vizinhos e policiais. Vi o corpo no chão, os projéteis disparados, o automóvel partido ao meio no poste.
Com o tempo, a morte deixa de ser um evento extraordinário e passa a fazer parte da rotina, como um fato da vida. Mas não é simples encarar situações traumáticas diariamente. Ainda mais vivendo de madrugada, com círculo social reduzido e ritmo biológico invertido.
Uma organização norte-americana criada pela Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia, em Nova York, se especializou em capacitar jornalistas para cobrir violência e apoiá-los nas dificuldades do ofício: o Dart Center for Journalism and Trauma. Segundo eles, o risco desses jornalistas desenvolverem transtorno de estresse pós-traumático é similar ao de bombeiros, socorristas e médicos de pronto-socorro.
Bruce Shapiro, diretor do Dart Center, veio ao Brasil em julho de 2010 para uma palestra no 5º Congresso da Abraji e deu dicas valiosas aos repórteres da madrugada (“cop reporters”, como ele dizia). Algumas: desenvolver laços sociais com os colegas de outros veículos, prestar atenção aos primeiros sinais de transtorno de estresse pós-traumático, tentar manter um estilo de vida saudável e conversar periodicamente com seu editor.
Observando essas dicas, o repórter fica bem.

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