quinta-feira, 14 de abril de 2011

Decifrar o dragão

Decifrar o dragão
Nada vai mudar da noite para o dia na relação com a China, mas Dilma Rousseff acertou no tom pragmático da viagem e a hora da ida. Logo no início do governo, a presidente foi ao país que se transformou no nosso maior parceiro comercial, grande investidor no Brasil. Para um bom relacionamento com a China, é preciso estratégia e conhecimento das regras e sutilezas, dos defeitos e virtudes do país.
A China é complicada. É economia de mercado e não é. É grande comprador, mas é ao mesmo tempo um parceiro perigoso. Está mudando, mas em alguns pontos permanece inamovível. Um partido que nasceu de uma forte ideologia comanda o país com uma elite burocrática forte, e total pragmatismo. Os únicos vestígios da velha ideologia é a ditadura.

Exigem que os outros países escolham entre ter relações diplomáticas com eles ou com Taiwan, mas as empresas taiwanesas são grandes investidoras lá. Uma delas, a Foxconn, apareceu como o maior resultado empresarial da visita da presidente brasileira à China, com o anúncio de que pode vir a investir no Brasil para fabricar displays digitais. A empresa esteve recentemente envolvida no pior conflito trabalhista da China, uma onda de suicídios de operários para defender melhorias salariais e de condições de trabalho.

O sinal que o país fez em relação à ambição do Brasil de ter uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU foi vago, o pedido para que o Brasil complete o reconhecimento da China como economia de mercado foi bem concreto. Se o Brasil completar esse reconhecimento na Organização Mundial de Comércio (OMC) haverá consequências diretas: não poderemos usar determinadas defesas comerciais contra eles. O problema é que não se pode dizer que a China seja uma economia de mercado, apesar de ter empresas privadas. Um dos preços mais fundamentais da economia, que é o câmbio, provoca as maiores distorções no comércio mundial por não se submeter às leis de mercado. Isso dá aos produtos chineses uma competitividade espúria.

Mas nem só de câmbio é feita a produtividade chinesa. Eles estão dando o mesmo salto de outras economias asiáticas, como a japonesa e a coreana, de produtos de baixa qualidade para os de alta tecnologia e muito valor agregado, com forte investimento em educação e inovação. O Brasil, como foi dito ontem aqui, tem poucas patentes, poucas marcas reconhecidas em outros países e por isso tem mais dificuldade de entrar no mercado chinês. Se ao final da visita da presidente Dilma à China, o setor privado e as autoridades entenderem o nosso dever de casa para se inserir na economia global com uma pauta de exportação mais diversificada, será um grande ganho. Reclamar dos defeitos da China todos fazem; entender como se relacionar com ela, só alguns poucos.

Os Brics que se reuniram ontem são uma ficção geopolítica. Há alguns pontos em comum entre os países, mas o grupo foi inventado por um economista de banco numa análise de tendência. O grupo é tratado pela imprensa e pelos governos como se fosse uma instância multilateral. Nossos interesses frequentemente estão em oposição aos de outros países do grupo. Quando se discute a proposta de controlar os preços de commodities, a China é compradora, e nós, vendedores. A eles interessa o controle dos preços proposto, entre outros países, pela França, mas não interessa a nós, que ganhamos com a alta dos produtos. O Brasil já viveu o lado oposto dessa moeda, quando as matérias-primas eram subvalorizadas. Naquela época, tudo o que nos restava era reclamar da "deterioração dos termos de troca" e amargar crises cambiais.

Na visita, a presidente defendeu interesses das empresas brasileiras como fazem todos os chefes de Estado do mundo em vez de tentar traçar paralelos ideológicos. A China hoje só usa a ideologia quando lhe convém, no resto do tempo defende seus interesses. A ideia de que faz parte conosco do mundo em desenvolvimento em conflito com as grandes potências é ingênua. A China é a segunda maior economia do mundo. Em várias áreas, possui mais assimetrias do que similaridades em relação a Brasil, Índia, Rússia e mais a África do Sul, que agora se integra ao grupo. A presença da China na África repete o mesmo modelo colonialista de extração de riqueza, compra de líderes locais que enriquecem rapidamente, uma presença predatória e voraz que pode terminar como as outras passagens de grandes potências no continente, deixando pobreza e desastres ambientais.

No debate da mudança climática também há muitas ambiguidades. Formou-se na negociação o Basic - Brasil, África do Sul, Índia e China - supostamente para se contrapor aos países ricos. Isso é outra inconsistência da geopolítica do clima. A China é o maior emissor de gases de efeito estufa junto com os Estados Unidos. Os dois são vilões. A Europa tem feito um esforço muito maior de redução das suas emissões desde que aderiu ao Protocolo de Kioto e estabeleceu metas para si mesmas. A ideia de que países em desenvolvimento não devam ter metas para cumprir vem sendo abandonada diante da evidência dos fatos. É por isso que a China apesar de ter essa economia poluidora, com energia baseada no carvão, está fazendo fortes investimentos em novas fontes de energia limpa porque sabe que precisará aumentar a chance de sustentabilidade do seu desenvolvimento.

A China não é para ser temida, não é parte de um clube do qual fazemos parte, nem pode ser mitificada. A China precisa principalmente ser entendida. Se essa viagem ajudar nessa compreensão, terá sido um sucesso.

Fonte: O Globo

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