Suponha que a humanidade deixe de existir. E que daqui a alguns anos aporte em nosso planeta uma nave alienígena, interessada em entender mais sobre os seres bípedes que dominaram a Terra por 200 mil anos. Por incrível que pareça, ao vasculharem arquivos e bibliotecas abandonados, é provável que esses arqueólogos das estrelas consigam mais informação sobre o nosso passado do que sobre o nosso presente.
Não se trata de uma afirmação infundada. Em outubro de 2010, um artigo da revista The Economist trazia uma fala do bibliotecário Adam Farquhar, responsável por projetos digitais da Biblioteca Britânica. Segundo ele, o mundo tem, de certa forma, melhor registro do início do século XX do que do início do século XXI. Isso por conta das dificuldades de armazenar a gigantesca quantidade de dados gerados e disseminados em meio digital.
Em artigo recente, o bibliotecário da Fundação Biblioteca Nacional Alex da Silveira reconhecia as vantagens de acessibilidade e reprodutibilidade que o meio digital oferece em relação aos suportes físicos. Mas, alertava, a velocidade com que os conteúdos são produzidos e descartados “pode nos levar a uma amnésia digital [...] uma espécie de buraco negro da informação”. Silveira citou um artigo de três pesquisadores em Ciências da Computação – Alexandros Ntoulas, Junghoo Cho (ambos da Universidade da Califórnia) e Christopher Olston (da Universidade Carnegie Mellon) – ao afirmar que 20% do conteúdo disponibilizado na web não poderá mais ser acessado um ano após a sua publicação, por ter sido modificado ou retirado “do ar”. Isto num universo de páginas que cresce 8% por semana.
O perigo da “amnésia digital” não ronda apenas a internet, nem se deve somente à vertiginosa multiplicação de bytes. Um documento publicado em 2007 pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, com o título O Dilema Digital, apontava desafios que, de uma forma ou de outra, se aplicam a qualquer área do conhecimento humano. Tais desafios derivam de um fato simples de complexas implicações: conteúdos digitais não podem ser decodificados a olho nu (como um livro, por exemplo). Eles dependem da intermediação da tecnologia. Como as tecnologias evoluem – e se tornam obsoletas – muito rápido, isso exige manutenção e atualização constantes tanto do arquivo quanto de seu mecanismo de leitura. Imagine ter todas as informações da sua vida arquivadas naqueles antigos disquetes flexíveis; a não ser que você visite um ferro-velho da informática, essas informações jamais serão lidas novamente. E é a necessidade de atualização constante de tecnologias e linguagens que torna o armazenamento digital, pelo menos no caso do cinema, 11 vezes mais caro do que o armazenamento tradicional, em película.
Para resolver esse dilema, em 2003 a ONU (Organização das Nações Unidas) elaborou uma Carta sobre Preservação do Patrimônio Digital, que recomendava ações necessárias ao gerenciamento de informações para garantir o acesso e a preservação a longo prazo de conteúdos digitais. Entre elas, o incentivo a projetos de digitalização de acervos em todo o mundo que interajam entre si; o desenvolvimento de um modelo aberto de sistema de informações, capaz de ser utilizado e melhorado por diferentes desenvolvedores e gestores; e ainda a construção de um critério padrão para decidir o que deve ou não ser guardado. No Brasil, essa preocupação levou à criação, pelo Ministério da Cultura e pela Universidade de Brasília, do Centro de Memória Nacional, para preservação, pesquisa e divulgação do patrimônio histórico e cultural brasileiro em meio digital.
O desafio é enorme e sabido. Nas palavras da presidente da Câmara Técnica de Documentos Eletrônicos do Arquivo Nacional, Cláudia Lacombe, “não existem soluções únicas, e todas exigem elevados investimentos em infraestrutura tecnológica, pesquisa científica aplicada e capacitação de recursos humanos”. Mas todos estão de acordo que precisamos preservar a maior parte do conhecimento gerado hoje em dia. Para nossos descendentes e, por que não, para aqueles arqueólogos das estrelas
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