MÍDIA E ELEIÇÕES
Imprensa e a democracia representativa
Por Dalmo de Abreu Dallari em 6/4/2010
Nas democracias modernas, o voto é considerado um dos direitos fundamentais do cidadão, pois é o instrumento político-jurídico mais utilizado para que, quanto possível, o povo tenha efetiva participação no seu próprio governo. Sendo muito grande o número de pessoas com direito a participar do governo da sociedade e sendo bastante numerosas e diversificadas as decisões a serem tomadas quase todos os dias, estabeleceu-se a democracia representativa como alternativa possível.
Embora muitos teóricos políticos insistam na idéia de que a democracia só é autêntica quando os governados participam diretamente das decisões de governo, a realidade acabou impondo a opção representativa. Isso foi reconhecido, numa observação realista, por James Madison, um dos criadores da Constituição dos Estados Unidos, em 1787. Num artigo em que tratou desse problema, observa Madison que o ideal seria a democracia, mas como isso não era possível, pelos grandes obstáculos de ordem prática, a alternativa seria assegurar aos governados o direito de escolher os governantes, embora sabendo que isso não tem a mesma autoridade da democracia direta. E assim se consagrou a democracia representativa, apesar de se reconhecer que ela tem muitas limitações.
Voto na França não é obrigatório
Aqui é oportuno acentuar algumas dessas limitações e fazer uma reflexão sobre o papel da imprensa em matéria eleitoral, uma vez que a imprensa pode reduzir, ampliar ou explorar essas limitações, com efeitos significativos para a autenticidade democrática da escolha e do desempenho dos governantes escolhidos. Além de dificuldades já reconhecidas e examinadas, como, por exemplo, a diversidade do nível de conhecimento e de informação dos eleitores, bem como dos interesses de cada um, a par da impossibilidade de identificação absoluta de todos os eleitores com qualquer dos candidatos a respeito de todas as matérias que serão objeto de decisões do governo, existe outro ponto que merece especial atenção: é a possibilidade de influência da imprensa sobre o comportamento e as decisões do eleitorado. Um fato que acaba de ocorrer na França é bem ilustrativo da complexidade do relacionamento imprensa-eleitorado.
Diferentemente do que ocorre no Brasil, onde a Constituição estabelece que o alistamento eleitoral e o voto são obrigatórios para os maiores de 18 anos, na França não existe a obrigatoriedade. A Constituição francesa limita-se a dizer que são eleitores "todos os franceses maiores de idade dos dois sexos, que estejam no gozo dos direitos civis e políticos". Em nenhum dispositivo se estabelece que o alistamento e o voto são obrigatórios. Em março foram realizadas eleições para escolha dos representantes do povo nas Assembléias Regionais, o que corresponde, aproximadamente, à eleição dos membros das assembléias legislativas no Brasil, com o acréscimo de que as assembléias é que escolhem os executivos das respectivas regiões.
Reflexão sobre a responsabilidade
O fato extremamente importante, que compromete o caráter democrático das escolhas, foi a ocorrência de um percentual altíssimo de abstenções, pois no primeiro turno das eleições mais de 50% dos eleitores não compareceram para votar e no segundo turno, realizado uma semana depois, o número de votantes não foi além de um pouco mais de 50%.
E houve muitas manifestações culpando a imprensa pelo alto índice de abstenções. Houve quem dissesse que ao ter conhecimento, pelas primeiras sondagens, de que muitos eleitores estavam absolutamente desinteressados, a imprensa começou a tratar a hipótese de um percentual muito alto de abstenções como um corretivo plenamente justificado que os eleitores aplicavam aos políticos, estimulando assim as abstenções. Outros afirmam que a imprensa tratou a hipótese das abstenções como uma brincadeira inconsequente, uma grande farra, sem nenhuma consequência séria. E também desse modo estimulou as abstenções, apresentando os abstencionistas como pessoas despreocupadas e bem-humoradas que não se dispunham a perder tempo com formalidades.
Esse acontecimento, ocorrido na França em março de 2010, deve merecer atenção e ser objeto de reflexão e análise, pois embora não se possa dizer que a imprensa tenha sido a principal responsável pelo alto nível de abstenções, não se nega que a imprensa tem alguma responsabilidade. E alguns analistas já acusaram a imprensa de ter agido com irresponsabilidade ou má-fé, comprometendo o caráter democrático das eleições, dos governos delas resultantes e, em última instância, do próprio sistema político da França, pois as eleições abrangiam todo o território francês, inclusive coletividades territoriais francesas localizadas no ultramar, como a Guiana Francesa.
Segundo a opinião desses analistas, a imprensa deveria ter chamado a atenção para o significado político, social e jurídico do exercício do direito de voto, cobrando participação e, mais do que isso, participação responsável, pois ainda que se façam restrições aos partidos políticos e aos candidatos sempre haverá a possibilidade de escolher entre os menos culpados pelas imperfeições do sistema e mais identificados com os interesses do povo.
As abstenções em nada contribuem para o aperfeiçoamento do sistema político, pois, além de outros aspectos negativos, colaboram para que o governo seja entregue a pessoas de pouca representatividade. E, de acordo com esses críticos, a imprensa deve fazer ummea culpa e repensar o seu papel social e político e sua possibilidade de influir para o aperfeiçoamento do sistema e dos costumes eleitorais, o que implica, em última análise, uma reflexão sobre sua responsabilidade, parceira inseparável de seus direitos e de seu compromisso com a democracia representativa.
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