Affonso Romano de Sant'anna - O Estado de S.Paulo
Os editores brasileiros revelam que estão publicando livros "demais". Isto é uma verdade ou um mal- entendido? Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras disse a este caderno que publica 280 títulos por ano e que "não dá para crescer mais com obras de mercado, até porque o mercado está muito competitivo. (…). Há editoras que hoje não conseguem entrar em redes de livrarias com um exemplar de algum título. Há uma superprodução. De livros, escritores, editores, um número de editoras grande surgindo".
Sergio Machado, do Grupo Editorial Record, informou, também aqui, que em 2010 o Brasil editou 55 mil títulos, numa média de 210 obras por dia. Só a própria editora Record, comentou, coloca no mercado 80 títulos por mês. Seu proprietário revelou que tem 2 milhões de livros em galpões que lhe custam uma despesa alta.
Eis uma crise paradoxal. De excesso e de carência. Excesso de livros ou carência de leitores? Assim como um copo com metade de água pode ser visto como um espaço metade cheio ou metade vazio, permitam-me examinar a questão por outro ângulo, fazendo uma correção: o Brasil não produz livros "demais", o Brasil produz leitores de menos. Há que "produzir" o leitor. E não estou falando de alfabetização. Essa cadeia do livro não existe sem o destinatário: o leitor. Não há excesso de livros, há falta de bibliotecas, de livrarias e de leitores. Há, por outro lado, centenas de iniciativas governamentais e particulares tentando corrigir isto. Todos, não só os editores, temos que modificar o conceito de livro, livraria, biblioteca, leitor e leitura, pois na verdade todo esse sistema em torno do livro está em crise (ou "metamorphose").
Mas que crise é essa? Vejamos.
Crise, leitura e o pré-sal. Falar de leitura é uma auspiciosa novidade. Na década de 20 do século passado, Monteiro Lobato fundou uma editora brasileira e a literatura infantil. Com Borba de Morais e Mário de Andrade, na década de 30 redescobriu-se a biblioteca pública. Na mesma época o governo federal criou o Instituto Nacional do Livro pensando em editar uma enciclopédia e livros. Nos anos 50, Paulo Freire reinventou a alfabetização fazendo um plantador de cana aprender a ler em 45 dias.
Mas o conceito de leitura sempre esteve oculto, era o não-dito.
Leitura não se limita à "alfabetização". Leitura não se limita à escola: trata-se de formar uma sociedade leitora, para o País enfrentar os desafios do século 21. Só em 1992 é que através do Proler pensou-se em implementar uma Política Nacional de Leitura. E desde 2006 que o PNLL (Plano Nacional do Livro e da Leitura) insiste numa política de leitura que atravesse todos os ministérios e seja uma determinação da Presidência da República. A rigor se poderia dizer: leitura é uma questão de segurança nacional.
Considerada a leitura como algo além da escola, algo além da alfabetização, algo que vai lidar com o "analfabetismo funcional" e com o "analfabetismo tecnológico", haverá (como já começa a haver) programas de leitura em hospitais, quartéis, fábricas, sindicatos, empresas, tribos indígenas, igrejas, condomínios, acampamentos agrários, comunidades quilombolas, favelas, programas para aposentados e programa para cegos, surdos, mudos e outros deficientes físicos, etc.
Nos últimos anos, "agentes de leitura" e "mediadores de leitura" se espalharam pelo Brasil. A experiência positiva dos agentes de leitura no Ceará foi levada para o Ministério da Cultura e expande-se em vários Estados. No Acre foram criadas mais de cem Casas da Leitura interagindo com uma nova maneira de ler a cultura e a natureza. Os agentes ou mediadores de leitura devem chegar a 15 mil brevemente e têm sido treinados por instituições como a Cátedra de Leitura da PUC-RJ. O ideal é que se mesclem com os "agentes de saúde" e os "médicos de família".
Nessa redescoberta da leitura, onde havia apenas o Instituto Nacional do Livro, espera-se a criação do Instituto do Livro, da Leitura e da Biblioteca e a nova administração da Fundação Biblioteca Nacional planeja construir 25 mil bibliotecas populares com livro de qualidade a 10 reais.
Enfim, a leitura é o verdadeiro pré-sal. O petróleo em si não resolve os problemas básicos de um país. Há países que têm petróleo e têm terríveis desigualdades sociais e opressão política. Ha países que não têm petróleo e estão na ponta do processo civilizatório. E todos os países que realmente se desenvolveram passaram pela leitura. A leitura torna os livros vivos e desenvolve os países.
Torna-se irrecusável contar uma história verdadeira que narrei na recente Jornada Literária de Passo Fundo (agosto/2011), quando Alberto Manguel e Kate Wilson debatiam equivocamente sobre esse tema. Diz-se que o Marechal Rondon, no princípio do século passado, foi designado para conquistar grande parte do território brasileiro levando a comunicação através de postes e fios que conduziam mensagens telegráficas. Depois de ter instalado praticamente em todo o País esse sistema de comunicação, ao colocar o último poste na fronteira da Bolívia foi surpreendido com a notícia de que Marconi havia acabado de descobrir o telégrafo sem fio.
Cem anos depois a situação se repete. Conseguiremos fazer na era do livro eletrônico o que não conseguimos fazer na era do livro impresso?
Se não conseguimos em 500 anos colocar uma biblioteca em cada canto do País, por outro lado, cada cidadão está se convertendo, à revelia de nossa incompetência histórica em um "consumidor" de informação através da informática, do Google, da internet. Se temos apenas 2.600 livrarias e 2.500 cinemas, é bom que nos espantemos e nos rejubilemos com o fato de que temos 109.000 lan-houses e que só uma favela como a da Rocinha, que tem apenas uma biblioteca heroicamente construída e seguramente não possui nenhuma livraria, tem, por outro lado, 200 lan-houses.
Inclusão digital. Tem-se falado muito de "inclusão digital". O Ministério da Comunicação (Gesac) informa que "telecentros" estão sendo implantados em todo o País e já existem 13.379 em 5.564 municípios. Eles podem ter o papel que as bibliotecas convencionais deveriam ter tido. Os "promotores de inclusão digital" são irmãos gêmeos dos recentes "agentes de leitura" ou "agentes de cultura". Os telecentros oferecem 6.200 kits do MC às prefeituras. O telefone portátil, o iPad e o Google são uma realidade. Os 200 milhões de telefones portáteis são 200 milhões de bibliotecas em potencial à espera de nossa criatividade. Assim como um viajante do século 18 tinha uma maleta de viagem em que carregava algumas dezenas de livros para ler, hoje pela internet todos podem ter uma biblioteca em suas mãos, seja nas margens do Tocantins ou no Sul do País.
O Brasil está vivenciando três fatos novos: 1) A invasão da eletrônica em nossa vida cotidiana, nos jogando em outra era. 2) O surgimento de outras gerações chamadas de X, Y, Z, pelos especialistas em marketing: jovens que vivem zapeando. São "dispersivos", fazem várias coisas ao mesmo tempo, não têm o sentido de "concentração" unidirecional que era a nossa. Nós os achamos superficiais. Mas e se estivermos realmente diante de um fenômeno de mutação não exatamente genética, e sim cultural? Um daqueles momentos de "point of no return" que remete para a metáfora que McLuhan usou: a lagarta assustada olhando uma borboleta em seu esplendor, dizia: "Eu nunca me transformarei num monstro daqueles...".
3) A emergência das classes C, D e E que até agora estavam fora do mercado, da comunicação e da cultura livresca. Quando a gente fala de classe C, falamos de um século de exclusão, sem saúde, sem saber o que é política.
Lembremos: o aprendizado já foi oral - o essencial era o uso da memória. Com a evolução, o saber passou a ser escrito. Hoje, passa pelo visual. Ou pode-se dizer, é oral, é escrito e também visual. O oral, o escrito e o visual se complementam.
Em algumas ocasiões tenho dito que, provavelmente, somos a última geração letrada. Gostaria de estar equivocado, que o futuro me desmentisse. Ou que descobrisse, descobríssemos formas novas de ler. Se olharmos a história do Brasil podemos detectar três momentos culturais e econômicos relevantes que nos forçam a uma decisão crucial no presente:
1) A febre do ouro e da pedras preciosas ocorreu quando éramos colônia e essa riqueza escoou para os cofres dos dominadores.
2) Tendo perdido essa chance, perdemos também a chance da revolução industrial nos séculos 18 e 19, porque aqui predominava a escravidão, a cultura agrária e a coroa brasileira era apenas cliente dos produtos industrializados europeus.
3) Estamos diante da revolução digital. Se perdemos as duas revoluções anteriores, hoje há algumas coincidências: a revolução digital chega com a avassaladora globalização, no momento em que o Brasil autossuficiente de petróleo incorpora outras classes e descobre o pré -sal.
Repito, para terminar: o verdadeiro pré-sal é a cultura e/ou a leitura. Os animais, os peixes, as árvores e até as bactérias leem constantemente o mundo antes de tomarem qualquer decisão. Por que o ser humano insiste em andar às cegas no universo da comunicação?
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