Artigo-JORNAL O POVO
O sertão vai virar mar...
Maria Juraci Maia Cavalcante30 Mai 2009 - 15h43min
Temos um Ceará afogado, coberto de águas, uma estação invernosa raramente vista, cobrindo as plantações, milhares de desabrigados, casas mergulhadas nas cheias dos rios, a sangria dos açudes, as canoas e barcos&As fotografias que circulam nos jornais locais são de rara beleza. Os cenários são feitos de paisagens muito contrastantes em relação àquelas do flagelo das secas a que estamos acostumados. Não é a primeira vez que há cheias por aqui. Achamos por acaso uma manchete da Folha de São Paulo, do dia 10 de Abril de 2002, que diz: Chuva atinge Ceará e deixa pelo menos 23 mil desabrigados. Todavia, para um lugar marcado por estiagens cíclicas e catastróficas, onde a cronologia do clima está submetida ao protagonismo da secura, as cheias desaparecem de foco e de interesse dos estudiosos, até porque historicamente interessou sempre muito mais às classes proprietárias do nordeste a indústria da calamidade do que a fartura desastrada das águas. Os estudos de geógrafos e historiadores sobre as secas são tão mais fartos! A literatura da seca ficou bem mais famosa, ficando a estação invernosa descrita apenas em crónicas da hora, focalizando aquela como mera alternância contrastante, quando se vê no Sertão, brotar milagrosamente o verde em riqueza de tons, o dourado das espigas de milho, o multicolorido das flores e frutas, aos primeiros pingos das chuvas. Essa tendência pode ser vinculada ao famoso estudo de Thomás Pompeu de Souza Brasil, Memória sobre o clima e as secas do Ceará, publicado em 1877. Aberta a tradição, os imortais do nosso Instituto Histórico, bem como os discípulos de Rodolfo Teófilo, atentos ao seu famoso relatório sobre a calamidade de 1877, apresentam aqui e ali listas cronológicas em seus estudos sobre a ocorrência de secas. Apenas repassadas na memória de uma vida de repetidas leituras, temos, desde a de 1605, a primeira registrada pela expedição de Pêro Coelho; a de 1790/93, que derrotou a indústria do charque; a calamitosa de 1824/25, somada à guerra civil; a seca de 1844/45, em que bem mais da metade do rebanho foi perdido; a de 1877/79, a maior de todas em perdas económicas e humanas. Entrando no século XX, chegando ao tempo mais recente, tivemos a de 1915, consagrada pelo crueza inscrita no famoso romance; a de 1918/19, as da década de 1930, a de 1942, associada à propaganda da Batalha da Borracha; a do início e a do fim da década de 1950, as duas da década seguinte; aquela dos anos 1970, a motivar uma solução militar, como a da fracassada Transamazônica; a seca impiedosa de 1983, televisionada e divulgada aos quatro cantos do País; as que abriram e fecharam os anos 1990, os insistentes prognósticos e previsões de catástrofes para os anos 2000. A Seca é o assunto de sempre, continua sendo a grande prioridade das políticas públicas, traduzida em inúmeros projetos faraónicos de açudagem, irrigação e transposição. O que fazer agora com esta grande cheia, além de convocar a Defesa Civil, declarar estado de emergência e socorrer a população flagelada pelas águas? Historiadores e geógrafos, senhores gestores do bem público, poderemos doravante tratar o clima do Ceará com base nessa alternância do regime de águas, que ora se retrai, ora esbanja vida? Já podemos tratar da cronologia das chuvas? Porque senão, continuaremos a alimentar a já tradicional cultura da lamentação, que nem resolve por inteiro o problema da seca, muito menos trata de repartir a abundância. E se tiver chegado a hora de realização da profecia do nosso sábio Antônio Conselheiro e o sertão estiver virando mar? MARIA JURACI MAIA CAVALCANTE Professora da Faced/UFC juramaia@hotmail.com
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