Artigo-JORNAL O POVO
Desastres previsíveis
Jesus Izquierdo30 Mai 2009 - 15h43min
Em 1918, enquanto alguns países da Europa sacudiam as cinzas da primeira guerra mundial, a Espanha se debatia contra uma pandemia mortal que passou a ser lembrada como “gripe espanhola”. O número de vítimas das duas catástrofes foi elevado. Acredita-se que a guerra tenha deixado um saldo de nove milhões de mortos e a “gripe espanhola” mais de quarenta milhões de vítimas. Os mortos pela guerra, em certa medida, eram pessoas que pertenciam, direta ou indiretamente, às forças em confronto, mas as vítimas da “gripe espanhola” eram pessoas indiscriminadas, uma vez que o vírus não respeitou qualquer fronteira e se espalhou além da Europa, chegando a alcançar inclusive a China. O horror da guerra e o pesadelo da “gripe espanhola”, embora tenham criado um clima tenebroso no mundo, não impediram a humanidade de retomar seu curso. A doença foi interpretada como um “azar” lamentável, mas transitório. As marcas dos confrontos foram transfiguradas pelos líderes políticos e “cidadãos de bem” como conquistas patrióticas orientadas a assegurar a liberdade, a ordem e o progresso das nações. Tempos depois, a segunda guerra mundial tornou-se a mais difícil e prolongada que a humanidade já viu. A vida de cinquenta milhões de pessoas foi violentamente subtraída, dentre as quais o maior número era de jovens combatentes. Questionado em razão dessa carnificina, Hitler exclamou, em acalorado discurso: “É para isso que servem os jovens!”. Josef Stalin, por sua vez, afirmou: “a morte de uma pessoa é uma tragédia, a de milhões é uma estatística”. Assim, nas palavras desses líderes restou absolutamente claro que, diante de um projeto político e/ou econômico, o sacrifício de vidas humanas é questão de somenos importância. O século XX nos deixou como herança um modo de pensamento orientado a fazer da ciência uma serva do capital e a transformar a liberdade, a igualdade e, principalmente, a propriedade privada num ideal coletivo. Para concretizar esses valores, os líderes políticos e os grandes donos de capital (que quase sempre são as mesmas pessoas) não poupam esforços, mesmo que isso signifique a submissão da humanidade a grandes riscos. Ninguém duvida que por trás das guerras estejam em jogo interesses econômicos, assim como por trás dos desastres naturais se esconda a exploração tão desenfreada quanto irresponsável do meio ambiente. Aos riscos que representam as guerras e as alterações climáticas se soma o surgimento de novas doenças. Com efeito, em menos de duas décadas fomos assombrados pela “doença da vaca louca”, pela “gripe aviária” e, mais recentemente, pela chamada “gripe suína”. O caso da “gripe suína” coloca em evidência as perversidades dos interesses comerciais. O número oficial de mortes ainda é incerto, mas sabe-se que a maioria das vítimas é de pessoas pobres. Segundo estudos preliminares, a “gripe suína” teria aparecido no distrito de La Glória , a 10 quilômetros das Granjas Carrol, um enorme criadouro de porcos, subsidiário da multinacional norte-americana Smithfield Foods. Essa multinacional havia sido expulsa dos estados norte-americanos da Virgínia e da Carolina do Norte por falta de salubridade no tratamento dos dejetos, mas, graças a tratados de livre comércio, conseguiu se instalar numa região pobre do México. Após serem anunciados os primeiros casos da doença e seu rápido alastramento para outros países, sob pressão dos empresários, uma das primeiras medidas concretas tomadas pela Organização Mundial da Saúde foi mudar o nome da doença, a fim de não comprometer a venda da carne de porco. Certamente a humanidade seguirá seu curso. Se não nos empenhamos para que a ciência seja respaldada pela ética e o capitalismo pela moral, em breve nos esqueceremos dos mortos por causa da “grupe suína” e ficaremos horrorizados quando aparecer outro desastre provocado pelo afã do lucro. JESUS IZQUIERDO Filósofo
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