quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Médicos viajam por 'Brasil de baixo IDH

São Paulo, 13/08/2009Médicos viajam por 'Brasil de baixo IDH'Entre 2007 e 2009, casal partiu pelo país para atender a população carente de municípios de baixo Índice de Desenvolvimento Humano-->
Os Médicos da Terra
Possuem uma página na internet com mais informações sobre o projeto original da expedição. Eles relataram o cotidiano da viagem com textos e fotos em um blog. Veja também o roteiro de cidades seguido por Danielle e Carlos em seu jipe entre 2007 e 2009.
FÁBIO BRANDTda PrimaPagina
O casal de médicos Carlos Alberto Maknavicius e Danielle Bouhid Bertolini chegou a Manari em abril de 2008 pela BR-300, estrada de asfalto esburacado, alagada pela chuva e tomada por cabritos e urubus. A cidade de 16,5 mil habitantes fica no agreste pernambucano, perto de Caetés, onde nasceu o presidente Lula em 1945. Com o pior IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) do Brasil, Manari foi a trigésima parada de uma expedição que o casal manteve por quase dois anos (entre 2007 e 2009), oferecendo atendimento médico gratuito aos moradores de áreas isoladas e carentes do país.
“A gente não sabia como escolher as cidades e surgiu a idéia de usar o IDH que é um bom parâmetro. Como você vai saber que cidade está precisando?", explica Danielle, contando que, após relacionar as cidades de IDH mais baixo, ela e Carlos pararam naquelas que estavam na rota que desejavam seguir pelo país.
Os dois cortaram 23 estados – só não passaram por Roraima, Amapá e Acre – e, segundo Danielle, a BR-300 não foi das piores estradas pelas quais passaram. Ao todo, eles atenderam mais de 4 mil pessoas, contando os beneficiados pelas consultas e pelas palestras sobre cuidados básicos de saúde e higiene que os médicos ministraram em escolas públicas.
Danielle faz questão de ressaltar: números grandiosos nunca foram objetivos da dupla. “Queríamos prestar um atendimento mais humano”, diz, explicando que o interior do país carece de médicos com disponibilidade e condições de trabalho para atender nas casas dos pacientes. “Os médicos do Programa Saúde da Família estão sempre distantes, ganham pouco, acabam tendo outros trabalhos e não ficam disponíveis em horário integral. O programa não funciona como deveria, atendendo nas casas”, avalia Danielle, apoiando-se na experiência da expedição.
Ela e Carlos criaram a ONG Médicos da Terra para colocar em prática seus ideais de medicina. “Não fiz medicina para ficar dentro de um consultório no centro de São Paulo. Medicina é para ajudar as pessoas necessitadas”, afirma Danielle. Com um mês e meio de namoro, em 2006, os dois descobriram que uma de suas vontades em comum era partir pelo Brasil aplicando seus conhecimentos médicos. Menos de um ano depois, em meados de 2007, caíam na estrada – ele com 37 anos e ela 32. Cada um pediu demissão de quatro empregos, todos “de carteira assinada”. “Não era ‘sou recém-formado, não tenho nada fixo e vou embora’. Eu não estava contente com a medicina que estava fazendo”, relata Danielle, que, como o companheiro, hoje é funcionária da Santa Casa de Fernandópolis, no interior de São Paulo.
Na estrada
A bordo de um jipe Land Rover Defender 110 o casal partiu de São Paulo em direção ao Nordeste com a ideia de parar nas cidades de baixo IDH e ensinar primeiros socorros para as pessoas. “Pensávamos que tinha muita gente para pouco médico, somos só dois. Mas não dá para não atender”, afirma Danielle. Acrescentaram os atendimentos no seu plano de ação o que, no entanto, não foi o impacto mais forte sofrido pelos médicos durante a viagem. “A gente tinha uma idéia de Brasil muito diferente daquilo que encontrou”, diz Danielle, explicando: “Falta médico e tudo o mais, mas de certa forma o atendimento de saúde existe, mesmo que precário. O que nem imaginávamos é a deficiência de higiene e saneamento. Mais de 95% [das comunidades visitadas] não tinha nem fossa, era a céu aberto. Não tem filtro de água”. Assim, eles alteraram o conteúdo das palestras, direcionadas a crianças do primário, e passaram a falar de temas como a importância de lavar as mãos, escovar os dentes e filtrar a água.
Depois do Nordeste, eles percorreram o Norte, o Centro-Oeste, o Sudeste e encerraram a viagem rodando o Sul do país. A princípio, Danielle e Carlos estavam dispostos a gastar todas suas economias para bancar a expedição, sem nem fundar entidade alguma. Mas os amigos sugeriram buscar patrocínio e eles acabaram recebendo diversos apoios, como o de uma empresa que cedeu material cirúrgico, de outras que contribuíram com equipamento para o carro e das secretarias de saúde dos municípios que aceitavam a visita dos médicos. “As secretarias nos recebiam e cediam os medicamentos que distribuíamos quando estávamos no local. O que sobrava, devolvíamos antes de ir embora”, detalha Danielle. No final, não gastaram dinheiro do próprio bolso para manter a expedição. “Mas gastamos tudo o que recebemos”, ressalta a médica.
Além do apoio com os medicamentos, as secretarias de saúde foram cruciais para a realização da viagem porque designavam os agentes de saúde para ir com os Médicos da Terra aos locais mais carentes das cidades. “Isso torna o trabalho mais efetivo, porque você vai onde realmente precisa”, avalia Danielle.
Resultados
O final da imersão Brasil adentro ocorreu em abril de 2009, conta Danielle, garantindo que valeu a pena. “Também fizemos grandes amigos com quem nos comunicamos até hoje”. Apesar de carregar a tenda no teto do jipe, não era em todos os lugares que se podia erguer acampamento e aí valia a hospitalidade dos locais e o apoio dos secretários de saúde. Uma das demonstrações mais marcantes de solidariedade, que a médica faz questão de relatar, foi o da travessia da BR-319, entre Manaus e Porto Velho. “Ela é perigosa mesmo em comboio e nós íamos sozinhos. Não tem posto de gasolina, não tem hotel e a floresta está cobrindo metade da estrada”. Quando eles já haviam aceitado o desafio solitário, dois casais de jipeiros decidiram os acompanhar no trajeto. “Atravessaram com a gente e logo em seguida fizeram o caminho de volta”, relembra Danielle, sem esquecer que, no meio do caminho, as companhias os ajudaram a consertar uma ponte para seguir viagem.
Um dos motivos para o encerramento da missão, conta Danielle, foi a doença que acometeu Carlos ainda na primeira metade da expedição e que ele suportou durante muito tempo. “Por isso ele não gosta de falar muito sobre a viagem”, explica.
Após os dois terem uma diarreia no sertão do Ceará, o organismo de Carlos manifestou uma doença auto-imune (que desencadeia anti-corpos que combatem o próprio corpo) chamada Síndrome de Raiter. “Isso causou artrite no joelho, na mão e no tornozelo, além de conjuntivite e outras doenças”, diz a companheira. “Há risco de perca de visão e descolamento de retina”, diz.
Durante três meses o projeto dos Médicos da Terra foi interrompido com o retorno dos dois a São Paulo – Carlos numa cadeira de rodas – onde ele foi submetido a fisioterapias e tratamento. “A doença pode voltar diante do stress físico e emocional. Mas decidimos correr o risco e terminar o que estávamos determinados a fazer”, recorda Danielle.
A segunda etapa do projeto – que seria realizada nos outros continentes – fica adiada indeterminadamente. “Esperamos retomar, mas não dessa forma. Ficamos consumidos. A forma como a gente fez foi efetiva, mas desgastante”, declara Danielle. Além da doença de Carlos, ela menciona o inevitável comprometimento da saúde mental e física dos dois perante a vontade de “fazer um trabalho social decente”. Trabalhavam de segunda à sexta, das sete ou oito horas da manhã até às dezessete ou dezoito horas. Ela acrescenta que os dois agora querem descansar e ficar próximo aos familiares e amigos, algo que a viagem lhes mostrou ser “a coisa mais importante”.
Agora, os Médicos da Terra esperam a hora certa para retornar aos municípios que já visitaram e ver como o resultado de seu trabalho repercutiu no longo prazo. Mas as condições da viagem devem ser melhores, admite Danielle. Ela ressalta uma crítica ao Conselho Federal de Medicina e aos Conselhos regionais: “Não nos apoiaram”, lamenta, explicando que, inscrita no Conselho de São Paulo, precisa de autorização do Conselho de cada um dos outros Estados onde quer trabalhar para exercer sua profissão de médica, mesmo que por poucos dias. “Chegamos a ficar uma semana parados em Feira de Santana, na Bahia, sem fazer nada, esperando autorização. É má vontade”, conclui.
Envie para um amigo
Versão para impressão


Versão em PDF

Leia mais Reportagens

Nenhum comentário: