MÍDIA & VIOLÊNCIAA lógica dos choques de desordem
Por Muniz Sodré em 10/2/2009
Na última quinta-feira de janeiro, os jornais cariocas deram razoável destaque ao roubo de uma marmita. Na verdade, mais do que razoável: uma folha popular, dessas compradas a meio real, fez manchete do acontecimento.
Havia um pano de fundo maior. Desde o dia anterior, ao longo de dezesseis horas, um trio de marginais armados assaltou mais de cinqüenta pessoas em um bairro da Zona Norte do Rio. Sem qualquer polícia à vista, não pouparam nada nem ninguém: bolsas, carteiras, cartões, até o cigarro aceso na boca de um transeunte. Para ainda não falar da marmita.
À grande mídia pareceu estranho que indivíduos armados abusassem de tempo e temeridade para arrecadar coisas de pequeno valor ao lado de outras mais valiosas. De certo modo, a estranheza foi o gancho para a extensão inusitada da notícia.
Frisamos aqui, entretanto, que é cada vez mais necessário apelar para canais comunitários a fim de bem se entender os percalços de uma megalópole atravessada por ilegalismos endêmicos. Assim, para o diagnóstico comunitário, não havia nada de estranho naquele tipo de assalto. Os bandidos pretendiam arrecadar valores, sim, mas antes de tudo,"esculachar". Ou seja, queriam mostrar, pela humilhação, aos moradores de uma área controlada por milícias, que as hostes do tráfico de drogas ainda exerciam ali o seu tradicional mandato.
Detalhe pitoresco
Os assaltantes terminaram presos naquele mesmo dia, a maior parte dos bens roubados foi devolvida às vítimas e o episódio não deveria, em princípio, merecer qualquer observação posterior. Todo ele já constitui um pequeno espelho do que se tornou a megalópole, avassalada pela triste realidade das drogas e do banditismo generalizado.
Há, porém, o detalhe da marmita. Pertencia a um quase ancião, da tez de Obama, que começara o seu dia às 4h30 da madrugada de quarta-feira (28/01), marmita na mão, a caminho do hospital onde trabalha como auxiliar de limpeza. Arrebataram-lhe os documentos e a comida. Depois da prisão dos larápios, o velho soube na delegacia que tinha de fornecer cópia do contrato de trabalho para que pudesse formalizar a sua queixa. Às 14h30, cansado e faminto, financeiramente espoliado pelo acréscimo no gasto diário com transporte, mas de posse do papel exigido, recebeu de volta na delegacia os seus documentos – sem a marmita. Esta havia simplesmente desaparecido com todo o conteúdo louvado pela vítima: frango com quiabo e macarrão. Preocupava-o, mais do que tudo, o molho de tomate sobre a massa, que"poderia estragar-se com o calor".
Para quem observa apenas os macro-acontecimentos, aqueles destinados a interferir na História – ainda que seja a historiografia do cotidiano –, a marmita do auxiliar de limpeza seria tão só o detalhe pitoresco num dos cenários de violência, os"choques de desordem" a que já parecem acostumados os habitantes de uma cidade como o Rio.
Sintoma de mal-estar social
Apáticos, os cidadãos se recusam a encarar a evidência do esfacelamento das velhas funções organizadoras e centralizadoras da urbe clássica. Fingem individualmente acreditar na permanência dos"choques de ordem" apregoados pelo marketing dos administradores recém-eleitos, quando sentem grupalmente a obsolescência dos mecanismos tradicionais de decisão e a incongruência dos sistemas de controle social.
A exigência administrativa do contrato de trabalho para a recuperação de um roubo é tão absurda e violenta quanto o próprio ato do roubo, mas disso ninguém parece dar-se conta. Na delegacia, o auxiliar de limpeza era tão vitimado quanto nas ruas. Na narrativa jornalística, a vítima, sua fome e seu sofrimento infligido pela burocracia não passavam de recursos retóricos para a"humanização" do relato.
Ou não, como diria o famoso compositor popular. A atenção dada pela imprensa ao desaparecimento da marmita pode ser o sintoma de um mal-estar social, já captado pelos"grupos de imaginação" que regem a pauta da mídia, mas ainda não plenamente explicitado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário