ENTREVISTA / LUÍS NASSIF
"A ‘cascata’ substituiu a técnica"
Luiz Egypto
Arguto observador do ambiente socioeconômico, não raras vezes o jornalista Luís Nassif embute em suas análises diárias avaliações sempre contundentes sobre a mídia e o papel que esta desempenha na cobertura e na reverberação da crise brasileira. Colunista e membro do Conselho Editorial da Folha de S.Paulo, para compensar a eventual aridez dos temas que aborda não deixa de dedicar, aos domingos, seu espaço no jornal a outra de suas paixões, a música popular – o que não causa estranhamento vindo de um bandolinista de mão-cheia.
Ao mesclar o jornalismo econômico com a crítica da mídia, Nassif constrói argumentos capazes de oferecer ao leitor ângulos insuspeitados para a compreensão da realidade nacional e para o fomento do debate de idéias. Na entrevista a seguir, ele analisa o comportamento da imprensa brasileira nesses tempos de vale-tudo editorial.
No episódio do impeachment de Fernando Collor, o frenesi de fatos novos levou a imprensa a praticar uma investigação jornalística açodada, sem critério e visando tão-somente o furo. Era melhor sair na frente do que dar a melhor matéria. Passados quase 10 anos, o uso continuado desse "cachimbo" terá entortado a boca da mídia?
Luís Nassif – A campanha do impeachment derrubou todos os filtros técnicos pelos quais a reportagem tem de passar. Desde então, não interessa se a reportagem tem ou não fundamento, desde que provoque impacto. Esse modelo mal acabado e apressado de cobertura acabou fazendo com que a "cascata" substituísse a técnica. O repórter pode soltar qualquer boato, como se fosse verdade, porque não será cobrado pelo erro.
A mesma mídia que ajudou a derrubada de Collor embarcou de armas e bagagens, a partir de 1995, no sonho de um paraíso construído com a estabilidade econômica, o fim do fisiologismo político e o crescimento sustentado. Até quando durou a lua-de-mel da mídia com o governo Fernando Henrique? Começou o processo de divórcio?
L.N. – A lua-de-mel durou até a mudança do câmbio. Lembro que o modelo de busca da unanimidade, por parte da mídia, é o mesmo antes e depois do divórcio. Antes, não se aceitava nenhuma crítica contra FHC. Todas as críticas eram tratadas como se fosse sinal de atraso contra a modernidade proposta por ele. Essa mesma unanimidade se volta contra ele, especialmente depois que perdeu grande parte da sua credibilidade atacando o que sempre defendera: a manutenção do câmbio a qualquer preço. Tanto lá quanto cá o estilo de cobertura é o mesmo: minimizando qualquer fato que vá contra a maioria e supervalorizando qualquer detalhe que confirme a posição da maioria. Nos dois casos, trata-se de uma mediocrização tremenda, de uma incapacidade de pensar.
Como avalia a divulgação contumaz pela mídia, como se investigação jornalística fosse, de gravações ilegais e dossiês suspeitos? Isso significa que agora é a fonte quem manda na pauta?
L.N. – Há dois pontos a se considerar. O primeiro é o uso da mídia por chantagistas. Nesse jogo de vale-tudo pela manchete, muitas reputações foram feitas por esses chantagistas ao permitir a seus aliados os "furos" jornalísticos – muitos deles premiados em função da falta de critério que domina a mídia hoje em dia. O pagamento foi conferir a esses chantagistas um poder inédito. Pela primeira vez eles saíram do gueto das publicações alternativas e passaram a utilizar o canhão da grande imprensa para seus propósitos pessoais, dando o escândalo como moeda de troca. O segundo ponto, que é igualmente relevante, é que se deu aos grampos um tratamento pouco técnico. Separam-se trechos de diálogos, que muitas vezes nada significam, e a eles são conferidos tratamentos escandalosos.
Tomem-se dois casos. O primeiro, da Sudam. Ninguém nega que existam escândalos na Sudam. Mas das trezentas e tantas horas de fita anunciadas, os trechos selecionados nada significam, por si. A reportagem é que enche de adjetivos a transcrição, tipo "a mais estrondosa denúncia" etc. e tal. Se os trechos selecionados são os mais expressivos, como é que fica o todo? No caso da capa da Veja sobre o "esquema Chico Lopes" ocorre o mesmo. Fala-se o tempo todo de grampos que permitiram a Cacciola chantagear Chico Lopes, e o único trecho mencionado não tem significado algum – a não ser o significado que foi colocado arbitrariamente pelo repórter.
No artigo "A marcha da insensatez" (Folha, 25/5/01), referindo-se às reações da opinião pública diante da crise instalada no governo Fernando Henrique, você escreveu que "em todos os campos abriu-se espaço para os ‘catárticos’, os que pensam com o fígado e estimulam todas as formas de linchamento, menos contra seus aliados". Como esses comportamentos catárticos e figadais reverberam na mídia? Que conseqüências suscitam?
L.N. – Suscitam o linchamento, a injúria, a irresponsabilidade e a manipulação da informação. Cada vez que a mídia descobre um culpado, o jornalista se sente no direito de imputar qualquer mentira ao acusado, no pressuposto de que, sendo ele culpado, levar uma culpa a mais não fará diferença. Esquece que o seu compromisso é com a informação. O pensamento catártico, por não ser técnico, estimula o uso da informação pelo jornalista de maneira subjetiva. De um lado, quando se trata de uma CPI contra adversários meus, desconsidero todas as críticas contra essa forma de investigação – amadorismo, exibicionismo, falta de respeito aos direitos individuais etc. Quando é uma investigação contra meus aliados, passo a considerar todos esses aspectos.
Com a falta de racionalidade, de lógica, o jornalista pode utilizar o argumento que melhor lhe servir naquele momento, independentemente até de preservar sua própria coerência pessoal. Como esses pensamentos catárticos se esgotam em si, quando passa o furacão ninguém é punido pelas informaçoes incorretas ou pelas avaliações apressadas.
A contrapartida das novas tecnologias da informação (velocidade) e do acirramento da competição jornalística (aumento da oferta de notícias) será o comprometimento do necessário rigor de apuração e de edição?
L.N. – Jamais. O que ocorreu é que a mídia brasileira descobriu, a partir de meados da década de 80, que a notícia tem que ter marketing. Em um primeiro momento, esse comportamento se refletiu no estilo das manchetes, das chamadas. Depois, no "esquentamento" da matéria, contornando a falta de substância com adjetivação pesada. Finalmente, na "cascata" pura e simples, em exercícios de ficção extraordinários. Há um princípio jornalístico simples: se o jornalista tem provas, indícios que reforcem sua acusação, ele os apresenta, porque isso garante a veracidade das denúncias.
Nos últimos anos prescindiu-se disso. Por exemplo, a famosa capa de Veja sobre suposto "esquema Chico Lopes" cozinhou todos os rumores não confirmados divulgados por ocasião da mudança do câmbio. Na disputa por manchetes, os diversos órgãos de imprensa aventaram inúmeras hipóteses. Parte delas, consistente, teve continuidade. Parte enorme morreu por si, porque era fantasiosa. Se tivesse consistência, o próprio veículo que insinuou a denúncia teria continuado atrás dela. As denúncias vazias morreram de morte morrida e, de repente, ressurgem belas e faceiras na reportagem da Veja, sem que se apresente um indício, uma indicação de quem era a fonte, detalhes sobre as supostas reuniões ocorridas, nada. Como é que fica? .
A mídia brasileira tem dado mostras de responsabilidade institucional na cobertura da crise em que enredou-se o governo Fernando Henrique?
L.N. – De modo algum, como não demonstrou no período em que ele estava popular e que os alertas sobre a crise cambial foram varridos para baixo do tapete. É importante que se esclareça que essa atitude da mídia não é ideológica, política. É um vezo, um anacronismo, uma maneira antiga de pensar, tão velha como a Inquisição, que não poupa ninguém. Tome-se ACM. Apesar da vasta influência que tem na mídia, foi fulminado da mesma maneira, com linchamento – embora eu mesmo defendesse a sua cassação. Tome-se Ciro Gomes. Ganhou espaço com esses escândalos todos, mas bastou investir contra a maioria (no caso ACM) para ser patrulhado.
O problema básico é que essa falta de critério, essa estratégia de buscar aumento de vendas no curto prazo, essa leviandade em espalhar denúncias pesadíssimas sem apresentar uma prova sequer, jogou o país em uma crise institucional, sim. Não houve grandeza nem responsabilidade. Nunca defendi que a manutenção da estabilidade econômica ou política sejam argumentos contra a divulgação de denúncias procedentes. Mas permitir que "cascatas" jornalísticas joguem mais lenha na fogueira, não pode. O leitor acaba sendo enganado, julgando que as denúncias (por irem ao encontro da justa bronca que tem de FHC) são sinal de independência e coragem, quando não passam de estratégias comerciais que a médio prazo depõem contra a credibilidade da mídia como um todo, mas no curto garantem aumento de tiragem – e mais crise.
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